Pegou do armário o pretinho básico que guardava para as ocasiões especiais, as luvas de pelica, um discreto chapéu de aba curta, e uns sapatos elegantes e confortáveis. Dispus tudo no sofá, e foi dormir. Amanheceu antes que o próprio dia e, após um café da manhã frugal, dedicou um bom tempo a se arrumar. Acentuou a palidez do rosto, ressaltou o tom escuro da olheira, e não colocou batom. Ante o espelho, ensaiou o gesto de tristeza, o sorriso enigmático e circunspecto, o olhar húmido. Já vestida, e com o semblante compungido, os vizinhos a viram sair do portal e chamar um taxi. Desceu no cemitério. Sentiu o cheiro da dor. Viu anjos de pedra a velar o silencio. Seguiu enfrente até divisar o cortejo. Ouviu o responso do padre. Palpou no ar a solidão da viúva. Na hora dos pêsames, acercou-se a ela: eu sou a outra, disse-lhe. Lembrou-se do refrão espanhol “dor de cotovelo e de viuvez doe muito, mas dura pouco”. O desta vai durar é nada, pensou com a satisfação do dever cumprido.
mini relato de minha autoria publicado em: http://www.hiperbreves.com.br